Ao meu amigo Pedro <br>e às suas aventuras biciclistas
A primeira vez que vi este Pedro, o mesmo gastava uma barba à general Custer, com uma perinha pretensiosa e uns pelos recortados, que todas as manhãs deveriam levar uma boa meia hora de trabalho. Coisas de putos e engatatões de bairro, poderia eu pensar. Mas não gostei. O dito Custer era um implantador do imperialismo e um genocida, tal como o Hernan Cortez, o Pizarro e o nosso tal louvado Albuquerque, que matavam tudo e todos, com tal de impor a sua vontade e lei, para sacar o que tivesse valor. E não gostava que o «amigo» da minha amiga Sandra andasse misturado com genocidas nostálgicos.
É claro que havia argumentos fortes a favor deste Pedro: tinha sido o primeiro a ver que os paizinhos da Sandrinha sabiam e tinham acesso a peixinho fresco e de primeira e o gajo viu ali um mar de possibilidades. Além disso a Sandra, ainda que pequenina, era bonita, bem proporcionada, inteligente e simpática. E boca p’raqui e olhinhos p’ra lá e a situação estava sem ponto de retorno. Mas eu sigo na minha: se não fosse o peixinho dos queridos sogros, este tipo andava a caçar bisontes no médio-oeste dos iuesei (USA, para os ignorantes).
Para ser sincero até eu me habituei a esta gente e, num momento de debilidade, passei a chamar-lhes amigos. Coisas da velhice. No entanto surpreende-me um email recebido deste Pedro, onde há uma reivindicação implícita de «beirão». Pode ser que o seja, que essa gente fale como os padres que lhe deram a santa catequese, mas o que ele não teve foi um professor de português: «acompanhasteis» não tem tracinho antes do «teis» o que desluz tão ortorômbica reivindicação. Também não é grande pecado se pensarmos que no Canto I, dos Lusíadas, quando o Camões escreve «Trapobana» realmente queria dizer «Copacabana» que era no que estava realmente a pensar. Que poder têm as mulheres com corpo bem desenhado, rodeadas de ambiente cálido e bebidas frescas!
Aqui há largos meses estava este Pedro a falar com outro amigo igualmente maluco das bicicletas, quando um deles diz: «eh pá! E se a gente fossemes (este era de Lisboa, da zona de Alcântara) de bici desde Madrid até Marvão, e lá alapávamos na casa daquele otário que tem lá uma quinta e que nem sabe quem lá dorme?» O Pedro pensou um bocado e soltou por aquela boquinha: «a ideia é do bariles, mas parece-me uma coisa muito curta. Estava em alguma coisa mais grande, prexemples, ir atravessar toda a Sibéria desde os Montes Urais até Irkutsk. São só aí uns quatro mil kms, que papávamos nas calmas em seis meses». O amigo, pensou bastante, (aí uns 15 segundos) e disse «essa é do caraças. Se calhar até podíamos conseguir o patrocíonio dalguma televisão e ficamos mais conhecidos c’aquele gajo da bola. Porra como se chama? É o ... já está, o Cristino Reinaldo. Parece c’o gajo está cheio de pasta. Então não se perde mais tempo, vamos avisar as parentas e toca de prepararssemos».
Uma alegria viva e profunda animava o ser do Pedro. Era grande. Iam sair nas tves portuguesas, espanholas, francesas, na CNN, na Telesur (a TV do Chávez), na BBC, na TV alemã (antes que as notícias da Merkel) e claro na TV russa e chinesa. Sem esquecer a TV local de Freamunde com grande influência a Norte do Douro, carago! Por outro lado o Governo do Sr. Passos de Coelho (ou seja, aos saltos) não deixaria de os apoiar, porque eles representavam pelo menos seis meses de notícias idiotas, que saíriam antes do número de desempregados e da nova queda do PIB. O Governo ainda poupava dinheiro porque já não tinha que comprar imagens de inundações em países que ninguém sabe onde estão. Fantástica ideia.
Na verdade só conseguiram um telefone por satélite, com direito a um minuto por dia, mas a bateria no fim da primeira semana já estava esgotada.
A aventura
Lá partiram num voo baratíssimo para Moscovo, onde o Pedro, apesar de dizer que é ateu, prometeu ao Sant Nikalai não cortar a barba até chegar a Irkutsk. Parvoíces, como se verá. Apanharam o comboio até Sverdelovsk, primeira cidade importante da Ásia e da Sibéria. Aí começava a aventura. Os campos estavam gelados, o que era bom, porque com cuidado podiam usar um terreno firme. Tomaram o caminho de Omsk, que ficava a umas boas centenas de kms. Quando tinham fome, sacavam umas latas de salsichas Isidoro, tentavam fazer um fogo para aquecer aquilo, mas rapidamente chegaram a conclusão de que era impossível. Com o acumular da fome, chegaram a conclusão e diziam-no em voz alta, porque não havia ninguém, «as putas das salsichas são mesmo boas. E a malta em Portugal acha que isto é comida de cão. Catrefada de burgueses de merda!»
Ao fim de dois meses já estavam quase em Omsk, onde esperavam um hotelito tipo Ibis e uma tasca para comer quente. Passadas mais duas semanas Omsk apareceu branca e radiante (como a canção do filme «A noiva», que de passagem se recomenda a quem tenha mais de 30 anos). Entraram pela rua principal, onde obviamente despertaram o interesse dos aborígenes. Começaram a procura de hotel e acabaram numa casa de madeira, onde o frio entrava pelas portas desconchavadas, as camas afundavam-se com o peso da pessoa, mas sempre era um tecto. Para seu espanto viram no outro lado da rua um cybercafé. Custava uma tonelada de rublos por minuto, mas o Pedro conseguiu dizer «Sandra sou eu, beijos ao Xavi». Não ouviu nada, pelo que nunca teve a certeza se tinha falado com ela ou com alguma pessoa de Burkina-Fasso ou do Mali. Mas ficou contente. É a vantagem das pessoas simples: não pedem muito à vida.
Para comer é que foi um problemasso. Só havia um hotel de super luxo, onde se reunia a máfia siberiana, mas os preços eram como os clientes: mafiosos. Procurando, tentando falar por gestos, lá lhes indicaram um sítio que não tinha sido limpo desde que o Lénine andava na escola primária. Apesar disso sentaram-se e fizeram sinais de que queriam comer. A moça, loira e avantajada de peitorais, com o cabelo amarrado numa trança que lhe caía pelas costas, uns olhos verdes a saltar numa cara redonda e branca, trouxe-lhes umas malgas grandes com uma espécie de sopa com outras ervas e vegetais e um bocado de nata azeda em cima. Disse «Eta bortsch». Eles pensaram que era o mesmo se ela dissesse que era um cabritinho saído do forno. Lá começaram a comer, chegando à conclusão, correcta, de que era uma sopa de beterraba, feita num caldo carne com muita gordura e o toque azedo das natas, para contrapor. Ao princípio sabia-lhes mal, mas entre a fome acumulada e o sabor da sopa, devoraram a malga com prazer. A moça voltou (era realmente bonita!) e ao olhar para eles e ver-lhes a fome na cara, disse «ichió?» os olhares cruzavam-se, mas não entendiam nada. Com as mãos (brancas, lindas) perguntou se queriam mais. Aí abriram-se os sorrisos (que lindos dentes tinha a moça) e disseram o único que sabiam dizer «Karachó, karachó!!» Mais duas malgas, no meio voltou a moça (andava como se não tocasse com os pés no chão) e perguntou «vodka?» Karachó, karachó!
A garrafa de meio litro evaporou-se e de longe atenta (tinha que ser inteligente, concluíram) a Natasha trouxe outra garrafa. Uma estranha sensação de conforto, de calor no estômago, de visões da Natasha, que já só viam nas suas mentes, tomou conta deles. Encostaram-se num banco, junto a uma enorme lareira, onde russos já iam pela décima garrafa e ali adormeceram. Claro que sonharam com a Natasha, mas isto não devia ser mencionado nestas crónicas. A verdade é que voltaram mais vezes e se não estava a Natasha, estava a Irina, a Svetlana, todas loiras, todas belas. «Como será a vida aqui», chegaram a perguntar-se, sem saber que as belas mulheres russas a partir dos 30 anos engordam, ficam umas focas e só ralham com os maridos, pelo simples problemita de voltarem a casa sempre bêbedos.
Exemplo típico de um trilema
A viagem continuou, o Inverno foi dando lugar à Primavera e o degelo transformou as «estradas» em poços de lama e água. As bicicletes caíam, as salsichas terminaram e só tinham um chouriço muito duro, que serve para acompanhar o vodka. Novosibirsk não estava longe, só pr’aí umas três semanas, e na cidade da ciência da Sibéria Pedro tinha um contacto, conseguido numa daquelas reuniões onde não se vai fazer nada, mas conhece-se mundo. Enlameados, esfomeados, só já tentavam não discutir um com o outro.
A científica cidade apareceu e puseram mãos à obra para encontrar o amigo Vladimir, do departamento de mobilidade para o período de 2050 a 2100. Depois das consabidas buscas e das idas e voltas ao mesmo sítio, num corredor velho e mal tratado abriram os olhos e viram o Vladimir. Abraços, falar inglês, assombro do científico sobre o objecto da viagem. Encontrou-lhes um hotelito melhor do que o anterior, disse-lhes onde e o que se comia e sobretudo convidou-os a ir a sua casa prometendo um verdadeiro bife strogonoff, em que a sua mulher era mestra. Não pensem que vou pôr aqui a receita, porque é uma coisa que quero deixar aos meus herdeiros e não para ser desperdiçada com vocês.
Da universidade conseguiram ver e falar com as famílias, garantindo que dentro de um mês estariam em Irkutsk. Esta ideia foi comunicada ao Vladimir, que depois de ver as bicis, vê-los a eles e conhecendo estradas e caminhos, lhes assegurou que, na melhor das hipóteses, seriam 2-3 meses. O problema era que eles já tinham dito à família que os esperassem dentro de um mês, olhando as plácidas águas do lago Baikal, o mais profundo do mundo. Também tinham percebido que outros amigos se estavam a organizar para fazer parte do comité de recepção.
Não havia tempo a perder. Com um bom lote de comida e indicações concretas do Vladimir, meteram-se com novos brios ao caminho. Mas as coisas mal pensadas têm sempre consequências nefastas. A barba que o Pedro tinha prometido ao patrono da Rússia, o tal Nicolau, cresceu sempre, todos os dias. Um bom dia, numa estrada boa, a boa velocidade, a cabra da barba (e não a barba da cabra, como estarão a pensar), mete-se na corrente da biciclete e, pumba, o Sr. Eng. especializado em mobilidade espetou-se no chão duro, ficando totalmente imóvel. Ele há coisas na vida! Foi o único que lhe passou pela cabeça. O problema era que os pelos eram difíceis de sacar da corrente, cortar um pouco da barba era um sacrilégio que o Nicolau não tardaria em cobrar com juros e não estavam seguros de que a corrente pudesse funcionar correctamente, com um montão de pelos no meio. Era o exemplo típico de um trilema, como o da anedota, que não vou contar aqui porque há menores na sala cibernética. Decidiram olear a corrente e a barba, o Pedro deitado no chão ia vendo como reagia a corrente e o amigo, muito lentamente ia torcendo a roda. Ideia acertada, só possível de parir por uns engenheiros no meio da Sibéria e não num livro do Asterix. E só durou quatro horas!!
Quando chegaram a Krasnojarsk, desviaram para a estrada que levava a Irkutsk, onde o comité de recepção já ia estando farto de carne de yak e de peixes do lago cheios de espinhas. O caminho tinha melhorado bastante e pedalavam com alguma soltura. Mas nem tudo eram boas notícias. Numa tarde, no meio da estrada viram um urso, que passeava tranquilo sem mostrar ideias de sair da estrada. Pararam com o medo lógico que o animal impunha. Pior ainda quando começou placidamente a caminhar na direcção deles. Desceram e encostaram-se às bicicletas. O urso aproximava-se sobretudo do Pedro. Parou a um metro dele e ficou a olhar, com o ar tranquilo que só podem ter os animais que se sabem fortes. Quando se aproximou ainda mais, o Pedro começou a sentir uns ruídos na barriga, que anunciavam uma caganeira imediata. O urso levantou uma pata na sua direcção e começou a tocar-lhe a barba, como para reconhecer quem era aquele outro animal. Pensava que não era um homem daqueles que vão armados e disparam e matam ursos, como o Sr Don Juan Carlos, Rey de Espanha e de mais umas centenas de raparigas de bom-ver. Gostou da longa barba. Encostou-se à barba e sentiu um certo conforto. Deitou-se no chão, sempre a brincar com a barba. Nunca abriu a boca e passava a barba pela cara. Pedro não tirava os olhos das garras, não fosse que uma carícia mais profunda lhe retalhasse o corpo. Depois de alguns minutos, que pareceram horas, olhou para o Pedro, directamente nos olhos, abriu levemente a boca e deu meia volta e meteu-se no bosque de berioshkas, roçando com o corpo na pele branca destas árvores. Continuaram parados, até que, sem falar, decidiram sprintar pela estrada para longe. Depois de uns kms, decidiram, como qualquer português, que o melhor era aquecer-se com uma garrafa de vodka.
Moral da história
Chegaram a uma cidade, Angarsk, que estava a um dia de viagem. Já não havia forças e o medo obrigava-os a olhar sempre para o bosque. Nesta cidade havia também um telefone. Daí telefonaram para o hotel de Irkutsk e pediram que arranjassem um transporte para os recolher. Depois de várias tentativas encontraram um velho Volga que aceitou fazer a viagem depois de largas discussões sobre o preço. Passadas duas horas os dois biciclistas viram chegar à rua principal da terra o Volga, com a Sandra e algum outro amigo. O encontro é tão obvio que não vou descrevê-lo. Outras duas horas, com as bicis no tecto do carro, entravam em Irkutsk. O Xavi olhou para eles, sem os reconhecer, mas como já estavam há bastante tempo esperando, ele já tinha aprendido almas frases de russo. Ao ver a mãe abraçada a um homem de barba enorme, pensou «Eta mamiovska tensk novisky liublu» (Esta mãezinha tem um novo amor. O Xavi falava metade em russo metade em português).
Naquela mesma tarde e diante do Xavi o Pedro cortou a barba e o miúdo reconheceu-o. «Eta papi».
Moral da história: o tempo das aventuras, tipo Vasco da Gama e outros já passou. Além disso nas descobertas havia muita pasta a ganhar na aventura.
O único jornal que comentou a história foi na crónica do Ricardo Araújo Pereira, que resumindo disse: «continuamos a ser um país de aventureiros, mas agora, fazemos isto grátis». Que país!
O Governo nem comentou e as televisões ignoraram a gesta. Mas, numa tarde em Lisboa, em frente de duas imperiais, os dois amigos biciclistas resumiram tudo à portuguesa: «Eh pá, foi do caraças!!!»